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A decisão do STF sobre coisa julgada em matéria tributária traz riscos para o meu negócio?
No último dia 08 de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar dois recursos em demandas específicas (RE 955227 – Tema 885 e RE 949297 – Tema 881), fixou tese nova que repercutiu entre os empresários e terminou causando perceptível preocupação. Entretanto, após a ressaca do desassossego, brota a ponderação natural se haveria, de fato, motivo para tamanha aflição.
Naturalmente, dada a importância do tema, muitos operadores do direito passaram a escrever sobre o novo posicionamento do STF. Alguns textos muito bons, outros nem tanto, porém. Em todos os casos, contudo, textos técnicos debatendo perspectivas e interpelando a decisão, algo natural no mundo jurídico.
Contudo, imaginando que ao enveredar por tais textos, o empresário termine com mais dúvidas que conclusões sobre a segurança jurídica de seu próprio negócio. Surge, assim, o desejo de desembaraçar essas ideias enoveladas e apresentar um aspecto, quiçá, otimista do cenário que se descortinou.
Um bom início é conhecer o texto da tese fixada pelo STF: as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.
Facões amolados, vamos desbravar essa floresta de termos complexos, um-a-um.
Quando uma lei é promulgada no Brasil, ela é considerada constitucional até que o judiciário reconheça sua inconstitucionalidade. Acontece que, até 2004, quando a Constituição Federal do Brasil foi alterada pela Emenda Constitucional nº 45, só existiam duas formas de determinada lei ter sua (in)constitucionalidade declarada pelo Poder Judiciário.
A primeira delas, a própria Constituição autorizou que alguns órgãos (ou pessoas investidas de determinados cargos) dessem início a uma ação específica (primeiro conceito: ação direta), em que o único ponto discutido é a própria constitucionalidade de determinada lei. Assim, não se trata de uma ação para discutir o problema de ninguém, concretamente falando. Por isso, dizem que a ação é abstrata. Nesse caso, a decisão do Supremo Tribunal Federal deve valer para todos.
Na segunda forma, temos um processo discutindo algo concreto referente a uma pessoa específica que poderia (e ainda pode) alegar a inconstitucionalidade de determinada lei. Assim, o juiz competente para apreciar aquela ação – concreta – pode, mesmo que no primeiro grau, reconhecer a inconstitucionalidade da lei. Como é natural que, em quase toda ação, a parte derrotada recorra ao tribunal para reavaliar a decisão do primeiro grau, também tem o tribunal competência para apreciar essa constitucionalidade naquele caso concreto, isso até chegar o magnânimo Supremo Tribunal Federal, a quem compete a última palavra em matéria de constitucionalidade.
Como é possível imaginar, nessa segunda situação, a mesma teoria (ou a mesma lei) pode ter sua constitucionalidade questionada em diversas ações. Ações que naturalmente percorrerão (ou já percorreram) caminhos totalmente distintos dentro do judiciário. E como cada juiz é livre para formar suas convicções, é possível também supor que ações sobre a mesma matéria tenham resultados completamente distintos. Além do mais, a depender da interposição de recurso, ou não, é provável que essas ações terminaram em instâncias distintas do Poder Judiciário. E sempre que uma ação, em que o Poder Judiciário decidiu pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade de determinada lei, termina, temos o chamado trânsito em julgado (segundo conceito), preservando a segurança jurídica das pessoas.
Aqui já é possível perceber que o sistema judiciário, enquanto solucionador de conflitos, enfrenta um relevante problema da uniformidade das decisões. Os resultados distintos das ações criam uma assimetria no país de uma determinada pessoa jurídica não precisar recolher um tributo que sua concorrente, cujo processo teve outra sorte, precise continuar pagando o tributo, pois normalmente os efeitos das teses tributárias se perpetuam no tempo (relação tributária de trato sucessivo, outro conceito).
Acontece que, em 2004, com a alteração da Constituição, uma terceira hipótese passou a coexistir com as citadas acima. Nessa nova hipótese, a demanda que começou tratando de um caso concreto, mas o STF entende que a demanda é relevante demais para que os efeitos da decisão atinjam não só aquelas pessoas envolvidas naquele processo, mas deve alcançar toda a população, surgindo, assim, o julgamento em repercussão geral.
Feita essa rasa introdução no mar profundo da teoria geral do processo, porém suficiente (creio) para entender os elementos da tese fixada pelo Supremo, vamos à análise do caso concreto.
Com a chegada da Constituição Federal em 1988, o Congresso Nacional criou, ainda em 1988, a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), através da lei ordinária 7.689. Como todos sabem, esse tributo incide sobre o lucro das pessoas jurídicas. O fato é que surgiram ações judiciais buscando o reconhecimento de sua inconstitucionalidade. E, como dito acima, as ações individuais percorreram caminhos distintos, alcançando resultados distintos.
Assim, algumas pessoas jurídicas tiveram ações transitadas em julgado, antes mesmo de chegar aos Tribunais Superiores, e passaram a não recolher CSLL, enquanto outras não tiveram a mesma sorte. Assim, pessoa jurídicas que desenvolviam a mesma atividade tinham cargas tributárias distintas, atingindo a isonomia e a livre concorrência, pois, em função de uma decisão do Estado (Poder Judiciário), as condições de mercado passaram a ser distintas. Quem paga menos tributo tem certa vantagem competitiva, ou não?
Em função da relevância na matéria, em 2007, em ação, questionando a constitucionalidade da CSLL, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a CSLL, criada pela Lei 7.689/88, era constitucional e proferiu esse julgamento em sede de repercussão geral, onde (já sabemos) os efeitos atingem a todos.
Apesar do entendimento, à época, de que a coisa julgada daquela ação individual prevaleceria, para aquelas pessoas beneficiadas, sobre os julgamentos proferidos em ações diretas ou em ações sob o regime da repercussão geral, a Receita Federal, discordando desse entendimento, passou a lavrar autos de infração pelo não recolhimento da CSLL após 2007, para quem, se valendo da ação individual, não recolheu o tributo.
Naturalmente, inconformadas pelo lançamento dos tributos pela Receita Federal que, apesar de estar em sintonia com o julgamento ocorrido em repercussão geral, contrariava pontualmente a decisão que aquelas pessoas jurídicas tinham favoráveis a si, passaram a mover novas ações judiciais.
Essas ações também chegaram ao Supremo que, mais uma vez, resolveu decidir em repercussão geral para que o entendimento passasse a valer de forma geral, atingindo a todos.
Eis que, em 8 de fevereiro de 2023, há uma semana, o Supremo decidiu que aqueles lançamentos eram válidos, pois o julgamento de teses tributária com trato sucessivo, proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos das decisões transitadas em julgado. Logo, o julgamento de 2007, em repercussão geral, afastou (a partir dele) o benefício que aquelas empresas teriam conseguido individualmente, nas ações individuais.
Contudo, o Supremo Tribunal Federal equiparou esse julgamento, em ação direta ou em sede de repercussão geral, ao surgimento de uma nova lei tributária. Para aquelas pessoas jurídicas que gozavam de uma ação judicial favorável, eventual julgamento contrário em ação direta ou em sede de repercussão geral, deve respeitar o mesmo prazo equivalente à criação daquele novo tributo. E como sabemos, alguns tributos só podem ser cobrados no ano seguinte, outros após 90 dias e raríssimos imediatamente.
O problema tão discutido nos grupos e fóruns jurídicos é que o Supremo Tribunal Federal não “modulou os efeitos” dessa decisão da semana passada. Em outras palavras, entendeu que caso aquela matéria já tivesse sido julgada no passado em ação direta ou em sede de repercussão geral, o tributo já era devido desde então. Respeitado, claro, a decadência (alguns entenderiam melhor se, mesmo de forma equivocada, falasse em prescrição. A lógica é quase a mesma).
Vamos, então, tentar organizar os cenários possíveis, para e qualquer tese tributária (não apenas a CSLL) a partir do último dia 08 de fevereiro:
Com essa singela contribuição, espero o presente texto ajude a desmistificar a decisão mais comentada do ano, trazendo, talvez, um lado positivo e favorável à livre concorrência. Naturalmente, a não modulação dos efeitos da decisão do último dia 08 de fevereiro expôs uma quantidade significativa de pessoas jurídicas a uma insegurança jurídica. O que poderia ter sido evitado.
Não obstante, a situação não é catastrófica. É um novo cenário e novas formas de existir. Se antigamente uma decisão judicial favorável em matéria tributária de trato sucessivo pudesse ser apenas guardada na gaveta, o benefício aproveitado e nunca mais tratar do assunto, hoje não é mais assim.
As pessoas jurídicas demandarão um acompanhamento técnico especializado nas teses tributárias. A reação imediata às mudanças não deve trazer tanto desconforto assim, desde que as decisões administrativas da gestão sejam tempestivas a partir de uma correta compreensão do fato.
Por Rafael Pontes de Miranda
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